Novas famílias – Multiparentalidade

O núcleo familiar passou por modificações ao longo das últimas décadas. Se há 50 anos compreendia-se como família apenas a tríade pai, mãe e filho(s), atualmente este conceito é elástico, comportando diversas possibilidades. Coube ao Direito se modernizar, a fim de acompanhar as mudanças sociais e culturais.

Atualmente, está em voga a discussão acerca da multiparentalidade, ou seja, o reconhecimento de vínculo familiar mantido entre várias pessoas. Quem almeja oficializar relacionamento do tipo encontra óbices impostos pela desatualizada legislação registral.

Contudo, quando a lei for omissa, o juiz decidirá de acordo com os costumes, a analogia e os princípios gerais de direito, conforme determina o artigo 4° da Lei 4.657/42 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).

A legislação registral deve ser relativizada naquilo que não se compatibiliza com os princípios constitucionais em vigor. Especialmente, aqueles direcionados à promoção do bem de todos, sem preconceitos de sexo ou qualquer outra forma de discriminação (artigo 3, IV da Constituição).

Foi nesta direção o julgado que reconheceu a existência de multiparentalidade determinando o registro de nascimento da criança com duas mães e um pai; vale ressaltar as peculiaridades do caso, detalhadas na decisão:

“(…) temos que ELENA é filha biológica de ROBERTO e MARIANA, que é casada com LUCIANA, oficialmente no registro público. A peculiaridade do caso está em que há comprovação de que o projeto familiar, tocante ao nascimento de Elena, foi compartilhado por MARIANA, LUCIANA e ROBERTO, tanto que se prepararam – em conjunto com os respectivos familiares – para terem a filha nesse molde familiar, com duas mãe e um pai. Para tanto, buscaram auxílio psiquiátrico, desde 02 anos antes do nascimento de Elena, junto à médica psiquiatra Olga Garcia Falceto, professora da Faculdade de Medicina da UFRGS e Coordenadora do Ensino do Instituto de Família, que declarou (fl. 27): “ELENA é filha de Mariana R., Luciana P. e Roberto C. Seus pais me procuraram como psiquiatra terapeuta familiar em Agosto de 2012 com a finalidade expressa de preparar-se para terem um filho em conjunto. Assim trabalhamos ao longo de 2012, 2013 e 2014 nessa direção. Mariana e Luciana vivem juntas desde 2006 e casaram-se oficialmente em agosto de 2014. Roberto conhece Luciana desde 1990 e Mariana desde 2006. Programaram ter um filho depois de conviverem muito em busca de criar uma cultura familiar comum. Seus pais, familiares e amigos participaram desse processo.” O projeto familiar comum é corroborado pela declaração da médica, especialista em fertilização humana, Dra. Isabela Piva Fuhrmeister, que orientou os requerentes acerca da inseminação intra-uterina, solicitando exames pré-conceptivos a Mariana, bem como esclarecendo sobre os impedimentos legais para inseminação artificial no caso (fl. 28). Também a declaração da médica, Dra. Alice, esclarece que MARIANA, LUCIANA e ROBERTO tiveram sempre todos presentes por ocasião das ecografias realizadas (fl. 34), sendo abundante as provas no sentido de que toda a gestação foi vivenciada pelos três, vide as fotos de fls. 36/60; as declarações de amigos e parentes diversos de fls. 62/69 e, especialmente, o “pacto de filiação” de fl. 70/75, no qual os requerentes dispuseram – e comprometeram-se reciprocamente – em relação ao exercício do poder familiar, direito sucessório, guarda, visitação e alimentos em favor da filha Elena.

“(…) há que se julgar a pretensão da parte, a partir (…) do princípio do melhor interesse do menor, informador do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), bem como, e especialmente, em atenção do fenômeno da afetividade, como formador de relações familiares e objeto de proteção Estatal, não sendo o caráter biológico o critério exclusivo na formação de vínculo familiar. (…) é flagrante o ânimo de paternidade e maternidade, em conjunto, entre o casal formado pelas mães e do pai, em relação à menor, sendo de rigor o reconhecimento judicial da “multiparentalidade”, com a publicidade decorrente do registro público de nascimento. DERAM PROVIMENTO.

(TJRS, AC Nº 70062692876, Relator: José Pedro de Oliveira Eckert, Oitava Câmara Cível, J. 12/02/2015).