Locador usufrutuário ou fiduciário, extinção de usufruto ou fideicomisso, como fica a locação?

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Não é raro que o locador não seja o proprietário do bem locado. Isso porque locação é transferência de posse, e não de propriedade. A posse não se confunde com a propriedade, é direito autônomo[1].

A propriedade é o mais amplo poder sobre um bem e abrange, em seu conteúdo, a posse (usar e gozar). Por isso, normalmente associa-se posse com propriedade. Até o próprio legislador de alguma forma complica esse entendimento ao dizer que “Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade” (art. 1.196 CC).

Mas a posse de um bem não advém somente da propriedade, pode originar (i) de um direito real, como é o usufruto (usar e fruir/gozar); (ii) de um negócio jurídico, o que ocorre no fideicomisso; ou (iii) de um fato, quando uma pessoa simplesmente tem o poder sobre a coisa.

O Enunciado 492, CJF, elucida a questão: “a posse constitui direito autônomo em relação à propriedade e deve expressar o aproveitamento dos bens para o alcance de interesses existenciais, econômicos e sociais merecedores de tutela”. Tanto é que, como adverte Anderson Schreiber, “o Código Civil brasileiro trata da posse antes da propriedade, orientação que reforça a autonomia da posse em relação à propriedade[2]”.

Portanto, o possuidor, mesmo que não seja proprietário, pode alugar o imóvel que se encontra em seu poder, consoante entendimento sumulado pelo TJRJ, no Enunciado 356:

“A validade da locação prescinde da propriedade do bem pelo locador, bastando que ele garanta o exercício da posse direta, desembaraçada, pelo locatário, salvo com relação à comprovação para legitimidade da propositura da ação de despejo, quando deverão ser observadas as exceções legais.”

Por fim, para ratificar, como consequência desse poder locativo, o locador não-proprietário tem legitimidade para demandar ação de despejo, renovatória e revisional – com algumas ressalvas legais[3].

a. Usufruto

Usufruto é um direito real (art. 1.255, IV, CC) e significa o direito de usar e fruir o imóvel alheio sem pagamento ao proprietário. O usufrutuário tem a posse direta, podendo usar, alugar, dar em comodato, e tem legitimidade para ações possessórias.

O nu-proprietário, dono, mantém a posse indireta e os poderes de dispor e reivindicar.

Se o nu-proprietário vender o imóvel, o adquirente tem que respeitar o usufruto, que pode ser vitalício ou por prazo determinado (temporário).

No que tange à transmissibilidade do usufruto, tendo em vista sua natureza personalíssima, o direito finda com o usufrutuário, de modo que é inadmissível a sua transmissão por alienação seja em vida ou por herança (art. 1.393 CC).

As hipóteses de extinção do usufruto estão enumeradas no art. 1.410 CC, de maneiro que, cancelado o usufruto, todos os poderes decorrentes da propriedade serão consolidados em nome do nu-proprietário.

b. Fideicomisso

Fideicomisso é um negócio jurídico, no qual o proprietário deixa um testamento nomeando uma pessoa (herdeiro ou legatário) com a incumbência de transferir o bem para um terceiro ainda não concebido (art. 1.951, e seguintes, CC).

Temos três figuras nesse negócio: (i) o fideicomitente (o testador/proprietário), (ii) o fiduciário (o herdeiro ou legatário incumbido de traspassar o bem) e o (iii) fideicomissário (beneficiário, pessoa ainda não concebida quando do testamento).

Por exemplo, A (fideicomitente) incumbe a B (fiduciário) transferir o imóvel para o primeiro filho de C (fideicomissário).

O professor José Fernando Simão leciona que “será fideicomissária a substituição quando o testador (fideicomitente) nomear um certo herdeiro ou legatário (fiduciário), estabelecendo que este, com o advento de certo termo ou condição, transmita a herança à pessoa ainda não concebida quando da morte do testador (fideicomissário)”. E complementa, “trata-se de modalidade indireta de substituição, pois o fiduciário recebe a herança que será transmitida ao fideicomissário[4]”.

O art. 1.952 CC dispõe que A substituição fideicomissária somente se permite em favor dos não concebidos ao tempo da morte do testador”.

Complementa o § único “Se, ao tempo da morte do testador, já houver nascido o fideicomissário, adquirirá este a propriedade dos bens fideicometidos, convertendo-se em usufruto o direito do fiduciário.”

O fideicomisso se extingue caso o fideicomissário faleça antes do fiduciário, ou antes de realizar-se a condição resolutória do direito deste último; nesse caso, a propriedade consolida-se no fiduciário (herdeiro ou legatário, que serviria de “ponte” para a transmissão da propriedade), nos termos do art. 1.955 do Código Civil – na forma do art. 1.958 CC.

c. Consequências jurídicas no contrato de locação com a extinção do usufruto ou fideicomisso

O dispositivo legal que trata dessa matéria é o art. 7º da lei do inquilinato:

“Nos casos de extinção de usufruto ou de fideicomisso, a locação celebrada pelo usufrutuário ou fiduciário poderá ser denunciada, com o prazo de trinta dias para a desocupação, salvo se tiver havido aquiescência escrita do nuproprietário ou do fideicomissário, ou se a propriedade estiver consolidada em mãos do usufrutuário ou do fiduciário.

Parágrafo único. A denúncia deverá ser exercitada no prazo de noventa dias contados da extinção do fideicomisso ou da averbação da extinção do usufruto, presumindose, após esse prazo, a concordância na manutenção da locação”.

Portanto, extinto o usufruto, o nu-proprietário tem até 90 dias para notificar o locatário e rescindir o contrato. A notificação, feita dentro dos 90 dias, é para desocupação em 30 dias, sob pena de despejo.

Passados esses 90 dias, sem o exercício do direito de rescisão, ele assume a posição contratual de locador, que era do antigo usufrutuário. O prazo de 90 dias conta da averbação de cancelamento do usufruto.

Dessa forma, o locatário, por precaução, deve inserir uma cláusula de vigência no contrato, com anuência do nu-proprietário, para que a locação permaneça em vigor mesmo com o falecimento do usufrutuário.

Esse entendimento é o que melhor se coaduna com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a saber:

“AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. LOCAÇÃO PREDIAL. EXTINÇÃO DO USUFRUTO. AÇÃO DE DESPEJO. DIREITO DO NU-PROPRIETÁRIO. ACÓRDÃO EM SINTONIA COM O ENTENDIMENTO FIRMADO NO STJ. (…) 1. A Jurisprudência desta Corte Superior, que possui firme o entendimento no sentido de que: “Ocorrendo a extinção do usufruto, o nu-proprietário reveste-se do pleno domínio do imóvel, estando, portanto, apto a ajuizar ação de despejo em face da locatária”. (STJ, REsp 736.954/MG, Rel. Min. Laurita Vaz, publ. 28/05/2007). (STJ, AgInt nos EDcl no AgInt no AREsp: 1.561.211/SP, Rel. Min Luis Felipe Salomão, publ. 03/08/2020)”

[1] “Reconhece-se, pois, a autonomia existente entre o direito de propriedade e o direito de posse, bem como a expressão econômica do direito possessório como objeto de possível partilha entre os cônjuges no momento da dissolução do vínculo conjugal sem que haja reflexo direto às discussões relacionadas à propriedade formal do bem”. (REsp 1.739.042-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, pub.: 16/09/2020)

[2] Manual de Direito Civil Contemporâneo, Ed. Saraiva, 2ª edição, p. 713..

[3] Exemplo: arts. 47, §2º e 53, II, da Lei 8.245/91

[4] Código Civil Comentado Doutrina e Jurisprudência, Ed. Forense, livro digital, p. 1.521

Escrito por Luis Arechavala
Advogado do Escritório Arechavala Advogados